A humanidade está envelhecendo mais depressa do que no passado – mas nós, latinoamericanos e caribenhos, temos vivido o processo de forma mais acelerada ainda. Em 2020, segundo dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), mais de 8% da população da região tinha no mínimo 65 anos. Até 2050, estima-se que a porcentagem dobre; até o fim do século, que exceda 30%. Com o aumento da expectativa de vida, cresce também o número de indivíduos portadores de doenças crônicas, e muitas delas, degenerativas e incapacitantes, demandam cuidados paliativos para aliviar o sofrimento dos pacientes e de suas famílias. De acordo com o estudo “Palliative care in Brasil: present and future”, mais de um milhão de pessoas precisarão dessa abordagem terapêutica no país em 2040.
Os cuidados paliativos (CP) se desenvolvem a passos lentos por aqui. Uma comissão formada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e Ministério da Saúde aprovou, em 2018, uma resolução com diretrizes para organizar os cuidados no SUS. No entanto, ela não possui força de lei – os pacientes dependem do desenvolvimento de uma política pública efetiva. Não por acaso, portanto, o Brasil chegou a ocupar o 42° lugar no Índice de Qualidade de Morte 2015, da Economist Intelligence Unit, ficando atrás de países como Equador e Chile.
Além disso, o acesso aos serviços, que se concentram no Sudeste, é restrito, e há pouco conhecimento dos profissionais de saúde sobre a área. Apesar da alta demanda por esse tipo de assistência e das evidências que atestam seus benefícios aos pacientes, o ensino dos CP no currículo médico é insuficiente. O ABNews conversou com duas especialistas sobre a importância do ensino dos cuidados paliativos na formação dos médicos e na prática da Neurologia: Laura Cardia, vice-coordenadora, e Camila Lopes, secretária do Núcleo de Medicina Paliativa da ABN, que conta com o apoio da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Leia a seguir.
AUSÊNCIA NA FORMAÇÃO
“Assim que comecei meu primeiro estágio optativo na residência em Neurologia, na USP, escolhi visitar um hospice no Paraguai. É uma instituição onde são acompanhadas e tratadas pessoas que estão sob cuidados paliativos. As imagens daquele lugar ficaram gravadas em mim, nunca esqueci. Durante a residência, percebi que queria propor mais aos pacientes e às famílias do que um tratamento modificador de doença. Afinal, na maioria das vezes, na Neurologia, eles não são eficazes, nós curamos pouco. Foi quando, por coincidência ou destino, conheci o professor Ricardo Tavares de Carvalho, que iniciou a implementação dos cuidados paliativos na universidade.”
“Eu o acompanhei em um atendimento e fiquei encantada com o modo como lidou com uma situação que é, para muitos, um ‘beco sem saída’, por mobilizar diversas esferas: a física, a psicológica, a social e a espiritual. Vi ali um caminho para mim”, relata a dra. Laura, médica assistente do Departamento de Neurologia e do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP).
Especialista em cuidados paliativos pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio Libanês que atuou por quatro anos como assistente da equipe de Cuidados Paliativos do Instituto do Câncer de São Paulo, a dra. Camila, por sua vez, sentia vontade de fazer algo mais por seus pacientes neurológicos. Ao conhecer a dra. Laura, enquanto se debruçava sobre as doenças do neurônio motor, ela entrou em contato com o universo dos cuidados paliativos e suas possibilidades de ação. “Há um antes e um depois na minha carreira. Hoje eu me defino como uma paliativista”, declara.
A trajetória das neurologistas ainda é incomum no Brasil. Para se ter ideia de quão recentes são as articulações em torno do tema, a primeira residência em CP em território nacional foi criada apenas no começo dos anos 2010, no Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE). A dra. Camila defende que o ensino dos cuidados paliativos na formação médica é essencial.
“Hoje, os residentes e até mesmo os estudantes de graduação se ressentem da ausência do ensino dos CP na formação e reconhecem sua importância. Não faz diferença se o profissional opta por uma especialidade mais cirúrgica ou clínica, pelo tratamento de doenças agudas ou crônicas, pelo cuidado de pacientes com incapacidade física ou cognitiva. Ele precisa saber lidar com os efeitos de doenças avassaladoras e com a morte, oferecendo conforto quando um tratamento efetivo já não é possibilidade. Em momentos como esse, devemos enxergar o paciente como um ser integral, com uma história, uma família, inserido em um contexto social.”
Para a dra. Laura, a abordagem deveria fazer parte do cuidado primário dos indivíduos com enfermidades que limitam a vida. “É péssimo”, lamenta, “ter de esperar que eles sejam acompanhados somente por uma equipe externa, especializada. Não há equipes suficientes para todos”.
NEUROPALIATIVISMO
Em países com pesquisas sólidas em CP, já se fala sobre a necessidade de pensar em cuidados neuropaliativos primários oferecidos pelo próprio neurologista e pela equipe que estabelece o contato inicial com o paciente, seja a da UTI neurológica, a da unidade de AVC, a da emergência. A dra. Laura frisa que portadores de Alzheimer e de Parkinson, por exemplo, devem ser atendidos por um profissional capaz de identificar e prognosticar as doenças, pensando em seu tratamento, mas também de aliviar os sintomas e lhes garantir dignidade. “O paciente com dor e seus entes queridos precisam ser escutados.”
“É fundamental que o neurologista responda a algumas perguntas. Há tratamento para a doença em questão? Se sim, é eficaz? Traz efeitos colaterais? Apresenta falhas terapêuticas? Será tolerado pelo enfermo neste momento? Tudo isso integra o planejamento de cuidado. Entretanto, as limitações existem, é claro. Não somos uma ilha. Devemos acionar a equipe multiprofissional de cuidados especializados se surgirem sintomas refratários, se a comunicação com a família se tornar árdua, se a pessoa estiver evoluindo para cuidados de fim de vida, se o caso, em suma, extrapolar nossa capacidade. Ao contrário do que ocorre na Oncologia, na nossa especialidade, muitas vezes, é difícil enxergar a evolução da doença”, explica.
“Nesses casos”, complementa a dra. Camila, “o tratamento multidisciplinar é de extrema relevância. O diálogo entre fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, nutricionistas e outros profissionais auxilia o neurologista. Assim, o paciente será melhor assistido.”