A coordenadora do Departamento Científico de Epilepsia da ABN e presidente da Liga Brasileira de Epilepsia, Katia Lin, e o R3 em Neurologia do Hospital Universitário-EBSERH da Universidade Federal de Santa Catarina, Fernando Netto Zanette, analisam, em artigo exclusivo ao ABNews, o currículo mínimo baseado em competências em Eletroencefalografia e Epileptologia. Um dos intuitos é compartilhar os pontos essenciais que todos os residentes da especialidade devem saber para a boa prática e a assistência de qualidade aos pacientes.
O ensino médico vem evoluindo rapidamente nos últimos anos e, recentemente, o modelo baseado em competência, centrado no aprendiz, vem permitindo mudanças inclusive durante o período da Residência Médica. Nesse sentido, esforços continuados são imperativos para aprimorar o ensino-aprendizado da eletroencefalografia (EEG), principalmente em países onde o exame de EEG é tipicamente lido por Neurologistas sem treinamento adicional em Epileptologia ou Neurofisiologia Clínica. Garantir que o médico-Neurologista seja minimamente capaz de interpretar corretamente um exame de EEG evitará erros diagnósticos que podem ter impactos vitalícios para um indivíduo erroneamente diagnosticado com epilepsia, por exemplo. Dessa maneira, uma comissão transnacional de experts em Epileptologia/ EEG, liderados por Fábio A. Nascimento (DOI: 10.1684/epd.2022.1476), conduziu uma enquete com 26 especialistas em epilepsia ao redor do mundo sobre conhecimentos essenciais em EEG a serem adquiridos pelos Neurologistas, com o intuito de auxiliar os programas de Residência Médica em Neurologia a desenvolverem um currículo consistente, objetivo e exequível, que permita uma formação mínima do médico-Neurologista em EEG. Neste artigo, discorreremos sobre os seus principais achados, bem como abordaremos a proposta da Força-Tarefa de Educação em Epilepsia (EpiEd Task Force), da International League Against Epilepsy (ILAE), de um currículo mínimo para diagnóstico e tratamento adequados das epilepsias (DOI: 10.1684/epd.2019.1039).
Quais seriam as competências mínimas que o Neurologista deveria adquirir sobre EEG durante seu período de residência médica?
Como sabemos, o EEG é uma ferramenta essencial para diagnóstico e avaliação do paciente com epilepsia, cabendo ao Neurologista, especialmente àquele com aspiração à área da Neurofisiologia Clínica e/ou Epileptologia, seu adequado conhecimento e interpretação com vistas a um melhor manejo de seus pacientes. Existe uma lista de padrões do exame de fundamental importância, mesmo para o Neurologista geral, que pode ser dividida em quatro grandes categorias: (1) achados normais, (2) artefatos, (3) variantes da normalidade e (4) achados anormais.
Como é o conhecimento em EEG e Epileptologia atualmente adquirido pelos Neurologistas durante seu período de residência?
Existem, no momento, dois métodos principais para o aprendizado de EEG e Epileptologia durante a o período de residência médica: (1) seguimento dos casos clínicos/pacientes ambulatoriais ou internados, guiados por um médico e/ou professor mais graduado ou especializado; (2) através de estágios de imersão, no qual o médico-residente participa das rotinas diárias de um laboratório de Neurofisiologia Clínica. O primeiro método, como é de se esperar, tende a ser médico-residente e paciente dependente: quanto maior o interesse do médico e o número de pacientes, melhor seu aproveitamento. A segunda maneira possível, também centrada no paciente, consiste no acompanhamento da realização dos exames de EEG/ vídeo-EEG em uma unidade de Neurofisiologia Clínica, da análise dos padrões dos traçados e confecção dos laudos junto ao especialista preferencialmente titulado em Neurofisiologia Clínica, além de discussão em equipe dos casos mais interessantes e que geram maior dúvida na interpretação. Devemos destacar que um dos métodos mais eficazes para a fixação do conhecimento na área é o método de ensino centrado no paciente.
Geralmente, nos diversos serviços de Neurologia do Brasil e do mundo, constata-se que o tempo é demasiado curto para o aprendizado adequado dos padrões essenciais em EEG durante o período de residência médica. Isso resulta em um conhecimento subótimo para a prática clínica diária do futuro médico-Neurologista.
Quais são os maiores desafios atuais para se implementar esse currículo mínimo em EEG e Epileptologia?
Dois pontos-chave que devem ser levados em consideração incluem infraestrutura/restrição orçamentária e, a depender do programa, a falta de uma lista de competências esperadas de conhecimento do EEG para os residentes. Essa ausência de uma padronização do conhecimento fundamental a ser adquirido pelo profissional em formação, de maior relevância clínica, acaba por comprometer o reconhecimento dos principais padrões do EEG.
Os diferentes níveis de formação, experiência e a didática variável dos especialistas responsáveis pela preceptoria nos programas de residência médica em Neurologia também é responsável pela discrepância na formação dos futuros Neurologistas, podendo ser um divisor de águas importante no ensino do currículo mínimo.
Como contornar ou superar esses desafios em se prover um ensino de qualidade sobre EEG e Epileptologia para o médico-residente em Neurologia? Existem algumas alternativas para o médico-residente em Neurologia?
Existem algumas alternativas para tornar o ensino mais efetivo e conseguir transpassar as barreiras – muitas vezes socioeconômicas – de cada região. Dentre as opções possíveis, uma bastante interessante alia a tecnologia à prática clínica: uma base educacional de dados online, com disposição de diversos exemplos de EEGs anonimados com achados de alta qualidade e característicos para garantir que os médicos-residentes sejam expostos a todos os padrões essenciais do exame de EEG. O acesso ao conhecimento de qualidade, com exemplos claros e elucidativos, bem como a possibilidade de desafios diagnósticos em plataforma similar, trariam um grande avanço ao médico-residente em sua formação, transpondo as barreiras geográficas relacionadas à falta de profissionais especializados e adequadamente titulados em determinadas regiões.
Quem deve ensinar essas competências em EEG e Epileptologia para o médico-residente em Neurologia?
Idealmente, o ensinamento básico do EEG compete ao Neurologista especialista em Neurofisiologia Clínica e/ou Epileptologia, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia e/ou da Sociedade Brasileira de Neurofisiologia Clínica. O título de especialista conferido por essas sociedades é a comprovação de que o médico está apto, acadêmica e cientificamente, para o exercício da especialidade. É conferido após avaliação específica, sendo reconhecido pela Associação Médica Brasileira, AMB. Ele garante o reconhecimento oficial para atuação na área. Os profissionais com alto nível comprovado de treinamento e maior tempo de experiência na área, por meio de didática adequada, podem promover um maior envolvimento do médico-residente, interpretação adequada dos achados mais relevantes bem como as melhores condutas a serem abordadas em cada caso, aliando a manifestação clínica com os achados eletroencefalográficos.
Há outras competências mínimas em Epileptologia que devem ser incluídas no currículo mínimo do médico-residente em Neurologia?
A Epileptologia vai muito além do diagnóstico clínico-eletroencefalográfico e do tratamento farmacológico com uso de fármacos anticrise (FAC) embora ambos sejam de fundamental importância. Conhecimentos essenciais, e muitas vezes negligenciados pelos programas, compõem a rotina do Neurologista e deveriam ser pautados ao longo do ensino, dentro dos quais se destacam: a comunicação do diagnóstico de maneira adequada ao paciente, explicando as consequências do não tratamento bem como os benefícios do controle das crises; a orientação e o manejo de complicações secundárias ao uso crônico dos FACs, a exemplo de alterações hormonais e sexuais, ganho ponderal e perda de densidade mineral óssea; a abordagem das comorbidades psiquiátricas, altamente prevalentes nas pessoas com epilepsia, com vistas à melhora de qualidade de vida. Outras competências, igualmente importantes e que merecem ser citadas, incluem a neurobiologia e genética das epilepsias, aconselhamento de estilo de vida, cirurgia de epilepsia e abordagem de emergências nas epilepsias (como estado de mal epiléptico). Em resumo, os sete domínios de aprendizado que devem ser incluídos em um currículo mínimo em Epileptologia incluem: (1) Diagnóstico; (2) Aconselhamento; (3) Farmacoterapia; (4) Cirurgia de epilepsia; (5) Emergências; (6) Comorbidades; (7) Neurobiologia das epilepsias.