Coordenador científico do Comitê de Dor da Associação Paulista de Medicina e vice coordenador do Departamento Científico de Dor da Academia Brasileira de Neurologia, Rogério Adas Ayres de Oliveira é o autor de Tratamento farmacológico da dor neuropática central: consenso da Academia Brasileira de Neurologia, paper recentemente veiculado pela Arquivos de Neuro-Psiquiatria.
Logo ao abrir seu artigo, ele registra que a DNC é comumente refratária às estratégias terapêuticas disponíveis e existem raras opções de tratamento baseado em evidência: “Muitos pacientes com dor neuropática não são diagnosticados ou tratados adequadamente. Desse modo, recomendações baseadas em consenso, adaptadas à disponibilidade de medicamentos no país, são necessárias para guiar decisões clínicas”.
Rogério Adas, também mestre em Medicina e doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, além de médico colaborador do Centro de Dor da Neurologia do Hospital de Cíninas da FMUSP, analisa o tema do ponto de vista das políticas públicas e outras questões relacionadas com exclusividade.
De que maneiraa realidade da saúde pública brasileira influenciou as recomendações para o tratamento da DNC propostas no artigo?
Influenciou diretamente. Aspectos como a experiencia de especialistas com vivência na área, disponibilidade e acessibilidade das medicações no sistema único de saúde (SUS) foram levadas em consideração. A dor neuropática central (DNC) é uma condição relevante do ponto de vista epidemiológico e carente de recomendações terapêuticas, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.
O artigo trata do Consenso para o tratamento da DNC da ABN que foi uma iniciativa do DC de Dor e que consistiu em uma revisão sistemática da literatura, meta-análise e opinião de especialistas do próprio DC de Dor e alguns colaboradores externos. Estes, seguindo metodologia padronizada (Appraisal of Guidelines Research & Evaluation – AGREE) e pesquisadores contratados, foram consultados por meio de questionário em plataforma digital e presencialmente, em fórum ocorrido no Neuro DC 2019.
A DNC, aquela decorrente diretamente da lesão das vias somatossensitivas no SNC, é causada sobretudo pelos acidentes vasculares cerebrais (AVC), doenças desmielinizantes (EM/NMO) e traumatismos raquimedulares (TRM). É condição prevalente, subdiagnosticada e subtratada, mesmo no meio neurológico. É o protótipo da condição dolorosa de difícil controle; a maioria dos pacientes não tem alívio completo dos sintomas e combinações de fármacos de diferentes classes são comumente empregadas para um controle álgico satisfatório. A busca por uma melhora da qualidade de vida e da funcionalidade para as vítimas da DNC pode ser desafiadora em alguns casos.
No campo da terapêutica farmacológica das dores neuropáticas, temos que o maior corpo de evidências está voltado para o tratamento da dor neuropática periférica. A DNC é carente de ensaios clínicos com fármacos estudados nesta condição. Assim, este Consenso, pioneiro em realizar meta-análise de estudos sobre a terapêutica farmacológica da DNC, teve por meta principal balizar as principais evidências da literatura com as peculiaridades da realidade da prática médica brasileira.
Ao que se atribui uma prevalência aparentemente maior de dores crônicas com características neuropáticas na população brasileira em relação ao que é estimado na população mundial?
Os estudos não permitem concluir que a prevalência de dor neuropática (DN) na população brasileira, estimada entre 10 e 14,5%, seja necessariamente superior a mundial, estimada entre 6,9 e 10% da população.
Em complementação ao questionamento anterior, espera-se que o mesmo quadro se reflita para a DNC?
Também não se pode concluir, existe carência de estudos epidemiológicos nacionais nesta área. Segundo a literatura a DNC afeta entre 3 e 8% das vítimas de AVC, entre 28 a 86 % das EM/NMO e entre 40-75% dos TRM. Predomina com a ocorrência de alterações somatossensitivas; por exemplo, 25% das vítimas de AVC com alterações da sensibilidade cursam com DNC.
Como explica a indicação de lamotrigina como segunda linha de tratamento, sendo que o medicamento se mostrou possivelmente não efetivo e nem é disponível no SUS)?
A lamotrigina é droga antiepiléptica consagrada e, para esta indicação, disponibilizada nas farmácias de alto custo no SUS. Nesta revisão foi considerada possivelmente ineficaz por conta de dois estudos negativos para DNC por lesão medular. Em contrapartida, conta com um estudo positivo e a opinião favorável de especialistas para o seu uso na DNC encefálica pós AVC e, por isso, foi classificada como fármaco de segunda linha a ser considerada especificamente para esta condição.
A gabapentina e a pregabalina, os antidepressivos tricíclicos e os ISRN são as principais opções para o tratamento da DNC tanto por lesão encefálica como medular.
Há dados disponíveis quanto ao uso de canabinóides para o tratamento da DNC no Brasil?
Não existem estudos controlados sobre o uso de canabinóides na DNC na população brasileira. O Consenso não recomenda o seu uso como monoterapia. Segundo dois estudos positivos e dois estudos negativos (CBD/THC em portadores de EM), os canabinoides foram considerados opções de terceira linha, como tratamento associado ou como alternativa a terapia opioide em pacientes refratários selecionados. As evidências atuais são limitadas, dentre outros fatores, pela alta heterogeneidade de formulações farmacêuticas empregadas. Novos e melhores estudos são necessários nesta área.