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Entre a fobia e a filia

Na civilização romana, o ópio simbolizava o sono e a morte. Na islâmica, para homens como o médico e filósofo Avicena, era indicado para o tratamento de diarreias e doenças oculares. Os chineses e os europeus da Renascença utilizavam-no com entusiasmo. Analgésicos, sedativos ou entorpecentes, o ópio e os seus derivados fazem parte da história humana há milênios, mas foi a partir do século XIX que cresceu o interesse mundial sobre a fabricação das substâncias.

“Os opioides são os medicamentos mais poderosos que existem contra a dor”, sumariza Camila Pupe, doutora em Neurologia e Neurociências e Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Naturais, ou seja, extraídos das plantas, ou sintéticos, produzidos em laboratório, eles atuam nos receptores opiáceos que trazemos no sistema nervoso central, proporcionando analgesia.”

Em geral, os médicos recorrem aos opioides ao tratar de pacientes oncológicos e de pacientes em fim de vida, com dores nociceptivas. Nesses casos, a neurologista explica que os enfermos costumam apresentar quadros de insuficiência respiratória, com sintomas como dispneia e dor oncológica, e a administração das substâncias é uma maneira de aliviar o sofrimento.

Para dores não oncológicas – a neuropática, por exemplo – a indicação do seu uso é mais restrita. A preferência é dada às dores agudas, não às crônicas, e o ideal é que o medicamento seja utilizado por até três meses, no máximo. “Ainda assim, não é uma droga de primeira linha. Pensando na escada analgésica da OMS, começamos o tratamento com anti-inflamatórios comuns. Depois, se o paciente for refratário, introduzimos opioides mais fracos, como o tramadol, para dor neuropática.”

“Evoluímos para opioides mais fortes, como a metadona e a buprenorfina, apenas se não houver resposta satisfatória, e em última instância, em situações específicas, pois o risco de dependência é real. E apenas em casos muito específicos e refratários empregamos opções invasivas, como a bomba de morfina.”

Por agirem no tronco encefálico, um dos efeitos colaterais dos opioides é a sedação, a redução do nível de consciência. Em casos extremos, eles podem levar a uma parada respiratória. Desse modo, é crucial considerar a história de cada indivíduo: aqueles que abusam ou já abusaram de substâncias, que têm transtornos psiquiátricos ou carregam o trauma de uma violência sexual são mais suscetíveis a desenvolver dependência às drogas, tornando-se adictos.

Lá e cá

A escada analgésica da Organização Mundial de Saúde (OMS), desenvolvida em 1986, estabelecia um escalonamento de tratamento para a dor, a princípio, oncológica. Em um primeiro momento, os médicos deveriam ministrar analgésicos simples e medicações adjuvantes; caso não surtissem o efeito esperado, opioides fracos, e em último recurso, opioides fortes.

Da seiva da papoula, planta milenar, é extraído o ópio. “No passado”, lembra a dra. Camila, “vários povos o utilizaram para analgesia e sedação, mas houve, sim, um período da história em que se banalizou seu uso. É pela banalização, aliás, que hoje os Estados Unidos vivem a grave crise dos opioides”.

Cenas de pessoas transitando pelas ruas como zumbis têm circulado nas redes sociais e chocado todo o planeta. Uma vez que o sistema de saúde estadunidense prescinde do uso de analgésicos como a dipirona, popular no Brasil, há pacientes que saem à cata do alívio proporcionado pelos opioides leves. Pouco a pouco, contudo, as drogas mais potentes se impõem.

Luciana Mendonça Barbosa, coordenadora do Departamento Científico de Dor e membro da Comissão de Educação Médica da ABN, além de neurologista e coordenadora da pós-graduação em Cuidados ao Paciente com Dor do Hospital Sírio-Libanês, relata que o uso recreativo de opioides ainda é baixo no Brasil, ao contrário do que se vê nos EUA. “O perfil de dependência por aqui está ligado à cocaína e ao crack, que são drogas de custo muito menor, embora já tenhamos casos de abuso de fentanil e vendas de ampolas em solo nacional.”

Opioide sintético cem vezes mais forte do que a morfina, o fentanil é classificado como o mais potente da classe. É comum em períodos intra e pós-operatórios e na terapia intensiva, mas exige cautela: seu início de ação rápido aumenta o risco de dependência.

Nos Estados Unidos, o tráfico paulatinamente se apropria da medicação. “Viraram rotina a produção das drogas sintéticas e o sucessivo roubo de cargas”, afirma a dra. Camila. “Se a oxicodona provocou o início da epidemia dos opioides, nos anos 1990, hoje é o fentanil que alimenta o mercado ilícito por lá. Não é incomum encontrá-lo misturado a psicoestimulantes que equilibram o efeito adverso de outras drogas, como a cocaína.”

Educação médica de qualidade

Ainda que o cenário brasileiro seja diverso, a dra. Luciana assevera que há muito o que aprender com a crise no exterior. “Precisamos ficar alertas, monitorar como têm sido prescritos os opioides no nosso país. E esse caminho também passa por uma boa formação dos profissionais nas escolas de medicina.”

Nas graduações, o manejo da dor costuma ser abordados de maneira vaga. A inexistência de disciplinas que discutam o tema com profundidade escancara a defasagem dos currículos. Malgrado cerca de 40% da população sofra com dor crônica, não são muitos os médicos capacitados para acolher e analisar com precisão o quadro dos pacientes.

“Isso acontece repetidamente no caso dos diagnósticos oncológicos, em que há carência na formação profissional no manejo dos sintomas. Muitos médicos não sabem ou temem prescrever opioides em função de uma possível dependência do enfermo ou por receio dos efeitos adversos”, analisa a dra. Luciana.

Para além das graduações, urge a ampliação das discussões nos programas de residência. A dra. Camila aponta que poucos residentes passam por serviços de dor crônica e cuidados paliativos, nos quais abundam doenças que demandam, em algum momento, o emprego correto de opioides. “Na outra ponta”, pondera, “há pessoas com dor crônica, não oncológica, que continuam recebendo prescrições de opioides, mesmo quando é contraindicado seu uso por tempo prolongado.”

RiOpioides

“O treinamento e a aquisição de conhecimentos não cessam na graduação nem na residência. Por isso, para mobilizar o debate, promovemos em setembro o RiOpioides, o primeiro simpósio sobre o uso racional dos opioides no Brasil”, acrescenta a dra. Camila.

Ao lado do geriatra e paliativista Filipe Gusman, ela organizou o evento que contou com convidados internacionais, como a Dra. Adriane Fugh-Berman, dos Estados Unidos, ativista contra o uso das drogas e a influência massiva da indústria farmacêutica, o Dr. Henrique Parsons, paliativista do Ottawa Hospital no Canada e o Dr. Paulo Pina, de Portugal, testemunha dos impactos negativos da falta de acesso aos opioides no país.

“Existem pacientes que são beneficiados por essas medicações e existem pacientes que sofrem em decorrência de seu mau uso. Nem opiofobia, nem opiofilia, acredito que a saída está no equilíbrio, na formação médica de qualidade e na atuação de um órgãoregulador.”

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