Por Ylmar Corrêa Neto, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia
“Bildungsroman” é o termo alemão para romance de formação, no qual se descreve a evolução intelectual e moral de um personagem. “Brainspotting: adventures in Neurology”, 2022, do Professor Andrew Lees, é um romance de formação autobiográfico em que Lees conta não apenas suas experiências de treinamento em diversos hospitais, como também anedotas de seus mentores e dos mentores de seus mentores, além de fatos históricos relacionados aos seus locais de formação.
Assim, Lees nos conta como seu interesse quando menino pela observação de pássaros, cuidadosamente examinados, classificados e anotados em diários, apesar de seu daltonismo, evoluiu para o interesse nas descrições das doenças, seja em antigos livros de medicina ou textos literários.
Ele relata seu interesse por William Gowers, que considera o melhor neurologista de todos os tempos, e pelos casos de Sherlock Holmes. Fala ainda das semelhanças do raciocínio clínico de Gowers e sobre a técnica investigativa descrita por Conan Doyle, além das vantagens obtidas pelo neurologista em formação ao ler esses contos policiais.
Aborda a formalidade das visitas na Salpetriere com François Lhermitte, e aproveita para detalhar a descrição feita em 1924 por seu pai, Jean Lhermitte, do caso de Madame D, com amaurose de um olho e uma sensação muito desagradável nas costas quando flexionava o pescoço. Menciona o silêncio na época sobre Charcot, não citado pelos franceses, criticado por sua teatralidade e pelo uso da hipnose no tratamento da histeria. Aproveita para contar várias anedotas sobre Charcot.
Ficamos sabendo que MacDonald Critchey contou a Lees que Gordon Holmes era muito exigente com seus residentes, que ficavam 24 horas por dia ao seu dispor, até mesmo para eventuais necrópsias na mesa da cozinha de casas de campo inglesas, quando algum paciente falecia longe de Londres. Fala bastante sobre o “National Hospital, Queen Square”.
Relata a fundação victoriana e a demolição, em 1995, do “Maida Vale Hospital for Nervous Diseases¨, onde passou a trabalhar em 1979, de Ferrier e Lord Brain, hospital em que apreciava, nas terças-feiras, às nove da manhã, os ensinamentos de neuropatologia de Robin O. Barnard, acompanhados de Earl Grey e bolo. Como curiosidade, cita que Barnard, dono de modos impecáveis, tinha as unhas sujas e comia seus sanduíches na mesma mesa em que cortava cérebros.
Andrew John Lees nasceu em 1947, em Merseyside, junto a Liverpool. Professor de neurologia no Queen Square e no University College, em Londres, foi em 2011 nomeado o autor mais citado no mundo em pesquisas sobre doença de Parkinson. É um amigo do Brasil, tendo feito múltiplas visitas desde 1983 e contribuído muito com a divulgação e com o desenvolvimento dos estudos dos transtornos do movimento em nosso meio.
Como objeto, o livro de capa dura, com tecido, formato pequeno, cerca de 170 páginas, poucas ilustrações, mantém a qualidade da Notting Hill Editions, que já havia publicado de Lees, em 2016, “Mentored by a madman”, e em 2020 “Brazil that never was”. No primeiro, trata da influência dos experimentos com drogas do escritor William Burroughs no seu interesse cientifico, no segundo, do seu entusiasmo e decepção com o Coronel Fawcett e sua procura por uma cidade desaparecida na Amazônia.
A leitura de Brainspotting é pontuada por uma série de pequenas informações, cientificas ou anedóticas, que divertem o neurologista. É um livro muito bem escrito e deve servir de modelo para nossos professores, para que registrem suas experiências e as experiências de seus professores, contribuindo com a ampliação do conhecimento da história da neurologia brasileira.