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Uma revolução silenciosa

Ao longo da história humana, as especulações a respeito do futuro variaram amplamente. Nos séculos XIX e XX, no entanto, nasceram imagens que ainda hoje persistem na nossa imaginação: foguetes levando populações inteiras a outros planetas, carros voadores rasgando os céus de cidades prateadas, robôs realizando toda sorte de tarefas, da arrumação de uma cama à operação de um cérebro.

Mary Shelley, que em 1818 criou o “Frankenstein”, e Isaac Asimov, que em 1942 apresentou as “Três Leis da Robótica”, foram expoentes da ficção científica que se destacaram ao levantar em suas obras questões sobre avanços tecnológicos e criação de vida artificial, sem esquecer os desdobramentos morais e éticos. Embora os foguetes, carros voadores e robôs, ao menos os que habitam nosso imaginário, estejam um pouco distantes do cotidiano, transformações silenciosas já estão em curso; talvez Shelley e Asimov hoje se surpreendessem com o que a Inteligência Artificial (IA), sem alarde, sem monstros, sem sirenes, é capaz de fazer.

De maneira concisa, a IA pode ser definida como um campo interdisciplinar da ciência da computação que se debruça sobre a criação de sistemas e programas capazes de realizar tarefas de forma autônoma, aprendendo com dados e se adaptando a diferentes situações. Esses sistemas são projetados para imitar processos cognitivos humanos aprendizado, raciocínio, resolução de problemas e tomada de decisões – a fim de resolver problemas complexos e realizar tarefas variadas.

A IA utiliza algoritmos avançados, redes neurais e técnicas de machine learning, isto é, aprendizado de máquina, para extrair padrões e informações úteis de grandes conjuntos de dados, tornando-se uma ferramenta valiosa na saúde e em outras áreas. Convidados pelo ABNews, os neurologistas João Brainer e Victor Gadelha falam a seguir sobre aplicações, implicações e limites da Inteligência Artificial. O futuro, afinal, é matéria do presente.

IA, braço direito

O dr. João é taxativo: médicos não podem ser substituídos. Não há tecnologia de última geração que torne dispensável a conexão de carne e osso entre as pessoas. “Mas os profissionais que não utilizam as novas ferramentas disponíveis serão passados para trás. Caminhamos rumo à obrigatoriedade do uso de plataformas que ajudam a tomar decisões”, afirma o doutor em Neurologia e Neurociências pela Universidade Federal de São Paulo e pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos, e professor adjunto na Unifesp.

Head de Inovação Médica em Hospitais da DASA, founder e CEO da MEDXVR, uma startup de realidade virtual para treinamento em saúde, o dr. Victor concorda com o colega. “No início do ano, foi publicado na revista The Lancet Oncology um estudo feito com mais de 80 mil mulheres na Suécia. O resultado mostrou que a Inteligência Artificial, sem aumentar os falsos positivos, detectou 20% mais casos de câncer de mama do que a leitura da mamografia feita somete por dois radiologistas. É um começo promissor.”

Segundo o dr. João, a IA tem se mostrado um braço direito em três eixos principais. Em primeiro lugar, ela já interpreta padrões de imagem em tomografias, ressonâncias, exames cuja avaliação sempre depende de um operador. Consegue indicar, por exemplo, que determinada área do cérebro tem alterações, que é preciso fazer um screening, que aquele paciente é uma prioridade.

Também vem progredindo nos diagnósticos. Os algoritmos coletam uma imensa quantidade de dados importados de prontuários digitais, de laudos de radiologia e de exames de laboratório, e começam a entender a investigação clínica. “Inserimos e nomeamos os dados: estas são as características dos pacientes com dengue, estas são dos pacientes com zika. Logo, a máquina passa a aprender sozinha como identificar os padrões nesse data lake, ou lago de dados, e apontar quem tem dengue e quem tem zika. O mesmo vale para diagnósticos de AVC, demência, Parkinson. São algoritmos preditivos, apenas. Nada de robôs entrando na sala com voz metálica”, brinca.

Para completar, a IA se aproxima do dia a dia dos pacientes por meio dos wearables, os objetos vestíveis. Os mais conhecidos são os smartwatches, relógios que monitoram a quantidade de passos que o usuário dá, com que velocidade anda, sua frequência cardíaca. Todos os dados reunidos são importantes para que doenças sejam diagnosticadas e para que o médico acompanhe a resposta dos pacientes aos tratamentos propostos.

“É a Inteligência Artificial multimodal: juntamos dados de diversas fontes sobre os pacientes, associados às informações dos wearables e até mesmo às pesquisas feitas por essas pessoas em redes sociais, e evoluímos para a medicina de precisão. Além do tratamento personalizado, torna-se possível prever quais enfermidades podem se manifestar”, sinaliza o dr. Victor.

Criando algoritmos

“Na Unifesp”, relata o dr. João, “desenvolvemos um trabalho em parceria com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, no qual registramos a voz de um paciente para avaliar se ele tem disfagia, que é a dificuldade de engolir alimentos ou líquidos. Até bem pouco tempo, não achávamos que a voz poderia ser um parâmetro, mas a partir de nuances mínimas, a máquina identificou indivíduos disfágicos. A IA reconhece padrões, alcança miudezas que nós não conseguimos”.

Ele conta que um célebre estudo da Universidade Columbia apontou a existência de padrões no eletroencefalograma de pacientes em coma tidos como normais pelos especialistas, com base na literatura médica. Os padrões, entretanto, foram identificados por uma máquina. O indivíduo, em coma, recebia ordens para abrir e fechar os olhos, abrir e fechar uma mão, e embora não fizesse nada, notava-se uma alteração no exame. “Todos os que tinham alterações no eletro chegaram a acordar em algum momento. Isso pode nos ajudar a fazer prognósticos mais acurados.”

Responsabilidade

Em “Frankenstein”, romance citado no princípio da reportagem, um cientista dá vida a uma criatura não-humana, mas com traços da nossa espécie, que se revolta e age com bestialidade. Victor Frankenstein é responsável pelos atos que a criatura comete? A pergunta é uma das mais famosas – e difíceis de responder – em toda a literatura mundial. Nos nossos dias, é possível perguntar se médicos são responsáveis pelas eventuais falhas das tecnologias que utilizam.

O pontapé da regulamentação já foi dado na Europa, em junho deste ano, lembra o dr. Victor. “Estabeleceu-se que os algoritmos não passam de suporte, e a decisão de como conduzir cada caso, portanto, cabe ao profissional. Nós controlamos a tecnologia. O contrário não pode acontecer.”

No Brasil, o Senado analisará o Projeto de Lei n° 2338, de 2023, para regular a Inteligência Artificial. Apresentado por Rodrigo Pacheco, ele visa estabelecer regras para a disponibilidade de sistemas de IA no país, garantir os direitos das pessoas afetadas por esses sistemas e definir critérios para o uso da tecnologia pelo governo. Também prevê punições para violações à lei e confere ao Poder Executivo a responsabilidade de escolher a entidade que fiscalizará e regulamentará o setor.

“Gosto de pensar no caso da telemedicina. Hoje, quando realizamos uma teleinterconsulta, ou seja, quando ligo para um colega de outra especialidade em busca de uma sugestão de conduta para um paciente, a responsabilidade pela decisão final continua sendo minha, não do hematologista ou do cardiologista com quem conversei”, pondera o dr. João.

Quanto à proteção dos dados das pessoas, o que também depende de regulamentação e fiscalização, o dr. Victor salienta que o Brasil é um dos países que mais evoluiu em relação à privacidade. “Existem boas práticas ao criarmos um algoritmo, por exemplo. Uma dela é o que chamamos de anonimização dos pacientes: todos os dados pessoais que podem identificá-los são ocultados do processo; eles se tornam números, totalmente anônimos. Devemos muito à Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD.”

Ensino médico

De acordo com a Demografia Médica no Brasil 2023, publicada em fevereiro, entre 2013 e 2022 foi registrado o maior aumento do número de cursos de medicina da história do país. Há mais escolas aqui do que em nações populosas como a China e a Índia. “É muita gente estudando, mas estudando mal, a qualidade da formação caiu bastante”, lamenta o dr. João. “Não surpreende quando constatamos que poucas instituições têm disciplinas de informática em saúde.”

“Há um Departamento de Informática em Saúde na Unifesp. Além de quatro médicos, lá estão programadores, cientistas da computação, estatísticos, biomédicos, enfermeiros. Eles dão aulas sobre sistemas de informação e falam sobre IA, o que permite que sejam percebidas as potencialidades dos alunos. Vários já entram no curso com noções de programação, ‘o novo inglês’. Infelizmente, são poucos profissionais e poucas iniciativas na área. Vêm à minha mente projetos pontuais, como os cursos de inovação e empreendedorismo oferecidos pela Universidade de São Paulo.”

Em compensação, em muitas ocasiões os próprios estudantes se organizam e procuram entrelaçar saúde e tecnologia. “É o que acontece em várias ligas acadêmicas”, lembra o dr. Victor. “Tenho a alegria de participar de algumasligas de inovação. Mesmo quando os currículos ignoram a informática, os jovens sabem que quem não se adaptaragora enfrentará dificuldades amanhã. Eles começam buscando o básico, pesquisando como a tecnologia funciona, quais são os princípios da IA. Não é preciso sair programando ou fazendo cálculos complicadíssimos, isso é um mito.”

As ferramentas tecnológicas são se limitam ao trabalho dos futuros médicos. Hoje, nas salas de aula, instrumentos como o Chat GPT, tantas vezes visto de forma vilanizada, podem ser poderosos aliados do processo de aprendizagem.

“Os alunos da Unifesp, como em outros modelos pedagógicos, são autorizados a usar o chat em determinadas provas, desde que ainda embasem seus textos em artigos científicos. Afinal, ele não é uma enciclopédia, mas sim um gerador probabilístico de informações baseadas na congruência de palavras. No fim das contas, a tecnologia é o uso que fazemos dela”, defende o professor.

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