Por Raphael Ribeiro Spera, membro do Conselho Editorial do ABNews, médico neurologista pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Uma das últimas obras de Dostoievski, O sonho de um homem ridículo compreende um conto que foi um marco ímpar na literatura mundial, sendo considerado uma “pequena obra-prima”. Retratando sua fase literária tardia, após ter sua pena de morte comutada em 4 anos de trabalho forçado na Sibéria, em 1849, as obras desse período são mais ricas e reflexivas. Exímio criador de personagens, o autor russo beira a perfeição na criação de um indivíduo sem nome, teoricamente niilista, possivelmente depressivo e que se entrega à dúvida entre continuar ou não a viver nos últimos dois meses, até um encontro casual com uma menina de oito anos em uma noite lúgubre e chuvosa na cidade de São Petersburgo.
Após chegar em casa e cair inesperadamente no sono, na dúvida entre atirar ou não contra si, o personagem adentra o estado onírico quando encontra o paraíso, sendo transportado por uma figura angelical, onde aparentemente tudo funciona na mais perfeita ordem – uma espécie de olimpo não corrompido pela serpente retratada no Genêsis. Nessa cena, por período por tempo indeterminado, são desenvolvidos diversos dilemas éticos, morais e filosóficos que nortearam e ainda conduzem questões de nossa existência como espécie humana. Sentido da vida, significado das ações e vontades, bem versus mal: “Eu não quero e não posso acreditar que o mal seja o estado normal dos seres humanos”.
Sabemos que o sono possui diversos estágios que se repetem ao longo de uma noite. Durante o sono REM (rapid eye moving), nosso cérebro encontra-se ativo, fragmentos da memória se fundem e criam histórias, muitas das quais estavam silentes em nosso inconsciente. 23 anos após a obra do escritor russo, era publicada A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, um marco da psicanálise, possivelmente com alguma influência desse e de outros livros. O tema do sono é hoje tratado de forma importante na neurociência, seja o aspecto fisiológico, seja a representação clínica de diversas enfermidades neurológicas.
O sonho do personagem é tão rico em detalhes e significado, que ele não acredita ter sido apenas sonho. Será que vivenciou aquilo de fato? Como disse: “Quem governa os sonhos, aparentemente, não é a razão, e sim o desejo, não é a cabeça, e sim o coração, e, no entanto, que coisas engenhosíssimas minha razão não realizava durante um sonho!”.