Quase 70 anos após ser criado, o Ministério da Saúde é, pela primeira vez, chefiado por uma mulher. A responsável pelo pioneirismo e ineditismo é a carioca Nísia Trindade, socióloga, autora da premiada tese de doutorado “Um sertão chamado Brasil”, entre outros trabalhos que enriquecem o pensamento social e a história das ciências em nosso país.
A ministra Nísia graduou-se em Ciências Sociais em 1980, tornou-se mestre em Ciência Política em 1989 e doutora em Sociologia em 1997. Presidente da Fundação Oswaldo Cruz desde 2017, é também a primeira mulher a ocupar a posição em 120 anos de trajetória.
Quando da pandemia da Covid-19, ela foi importante pilar da resistência ao negacionismo, defendendo a Ciência e a vacinação para todos, sem exceção – desde os idosos até as crianças.
Ela estava na direção da Fiocruz quando foi convidada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assumir a pasta da Saúde. Sua escolha, dentre outras razões, certamente se deu pela sensibilidade, pelo olhar atento às pessoas socialmente vulneráveis, além da competência e da fidelidade às evidências científicas.
Nesta reportagem, você confere o posicionamento de Nísia Trindade quanto à saúde coletiva, às campanhas de vacinação e a uma série de pautas essenciais para a assistência qualificada e o bem-estar dos cidadãos.
PRIORIDADES
“Entre as prioridades da gestão no Ministério da Saúde, destaco a atenção básica. O atendimento inicial aos usuários do sistema de saúde engloba orientações sobre prevenção de doenças, solução para evitar possíveis agravamentos e direcionamento de casos mais sérios para os níveis de atendimento superiores. É uma área, portanto, que pode até mesmo desoprimir as grandes filas do SUS. O Programa Melhor em Casa, o Programa Brasil Sorridente, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e a Estratégia de Saúde da Família (ESF) são algumas iniciativas governamentais que têm como foco a atenção básica.
O trabalho da ESF é de suma importância, assim como o papel dos médicos de saúde da família e dos agentes comunitários de saúde no provimento desse tipo de atenção e na identificação dos primeiros sinais de enfermidades. Um case que sempre recordo é o da ação desses agentes durante a epidemia de dengue na década de 1990, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, que contribuiu para que se detectasse o surgimento do tipo 2 da doença”.
VACINAÇÃO
“O Programa Nacional de Imunizações, PNI, completará 50 anos nos próximos meses. É referência no mundo todo, tendo levado o país a eliminar e controlar várias doenças imunopreveníveis. Já tivemos uma cobertura para poliomielite, para sarampo, na faixa de 90%, que é o que nós queremos recuperar, e hoje essa cobertura não está chegando a 70%. Trabalhamos a ideia de um movimento nacional pela vacinação, articulando estados e municípios. É indispensável a adesão da sociedade, da área de comunicação, para que atinjamos todas as pessoas que ainda hesitam em se vacinar ou a vacinar as crianças e os adolescentes.
De acordo com o cronograma do Programa Nacional de Vacinação de 2023, divulgado no fim de janeiro, a imunização prevê o combate à Covid-19, com reforço com a vacina bivalente, a intensificação da vacinação entre pessoas com mais de 12 anos e entre crianças e adolescentes, o que já estamos fazendo com sucesso. Reitero: é fundamental recuperar as altas coberturas vacinais. Isso vale para todas as doenças: a vacinação de Influenza, a multivacinação de poliomielite e sarampo nas escolas. Ressalto também que a vacinação das crianças voltou a ser obrigatória no Bolsa Família, uma condição para recebimento do benefício.
Não há solução mágica para o combate à desinformação e ao negacionismo. Temos de sensibilizar a população, dialogar com lideranças religiosas, com artistas, com todos, porque toda a sociedade precisa se envolver nesse movimento. O Zé Gotinha precisa voltar – e voltará – a ser uma das figuras mais proeminentes do Brasil”.
IMUNIZAÇÃO CONTRA A COVID-19
“Estamos em uma fase de transição, ainda teremos que definir como se dará a periodicidade. O importante, neste momento, é que todos tenham seu calendário vacinal completo. Existe a possibilidade de um reforço anual, o que está sendo avaliado de acordo com o comportamento das variantes do vírus. Lembro que reconstituímos o Comitê Técnico Assessor de Imunizações, para que tenhamos as melhores respostas com base científica”.
SAÚDE MENTAL
“Essa é outra área deixada de lado pelo governo anterior. Na atual gestão volta a ter protagonismo. Temos trabalhado em diálogo com as redes do campo da saúde mental. A propósito, há um grande aprendizado acumulado no Brasil nessa área, desde a luta antimanicomial. O ministério preparará terreno para uma conferência nacional de saúde mental e reforçará os Centros de Atenção Psicossociais, CAPS”.
POVOS ORIGINÁRIOS
“São 500 anos de opressão, de uma sociedade marcada pela desigualdade e pelo desrespeito aos povos indígenas. Embora a Constituição de 1988 represente uma conquista da luta desses povos, e avanços tenham sido feitos, como a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), o descaso ainda é grande. A quase dizimação dos yanomamis demonstra a que nível chegou a irresponsabilidade. Nos quatro anos do governo anterior, houve estímulo a garimpo ilegal naquelas terras, a todo o tipo de barbaridades e posturas fora da lei, desorganizando, ceifando vidas e colocando em risco de extinção aquela população.
Por isso o Ministério da Saúde decretou emergência sanitária por desassistência ao povo Yanomami e o presidente Lula mobilizou a Força Nacional do SUS para atender à comunidade. Em paralelo, preparamos o edital do programa Mais Médicos e investimos em ações complementares, desde assistência alimentar até garantia de condições mínimas de segurança para que os profissionais de saúde possam atuar na região.”
MAIS MÉDICOS
“Os médicos brasileiros vêm sendo incentivados a participar, a ocupar as vagas, garantindo assistência em áreas remotas e periferias. Dentro daquilo que a lei já prevê, também poderemos ter a presença de médicos estrangeiros. É fundamental reverter a desestruturação causada pela gestão anterior”.
CANNABIS MEDICINAL
“Há pesquisas e evidências científicas, vários países utilizam a cannabis medicinal em tratamentos, entre eles para a Epilepsia. Precisamos de evidências científicas e diálogo com a sociedade para romper com eventuais preconceitos. E de confiança, paz e democracia para cuidar da nossa saúde coletiva. O Ministério da Saúde não fará nada isolado. A meta é construir políticas a partir da ciência, sempre em diálogo com a sociedade, com os conselhos, com os parlamentares, com os movimentos sociais”.
FARMÁCIAS POPULARES, FILAS E DEMORAS DO SUS
“A PEC da Transição permitirá que o Brasil tenha recursos para diversos programas relevantes, como o Farmácia Popular, que está sendo reestruturado. Também trabalhamos em um plano nacional emergencial para colocar em dia os exames, diagnósticos e cirurgias eletivas. Esse plano deve somar a capacidade dos setores público e privado, possibilitando a melhora do acesso e a intensificação dos procedimentos em todo o país. Há ainda a possibilidade de os estados até dobrarem o valor que está na tabela do SUS a partir de um plano estadual que tenha como efeito a redução das filas.”
Imagem: Lula Marques/ Agência Brasil