Quando o renomado cientista português, António Damásio, publicou a obra “A Estranha Ordem das Coisas”, em 2017, defendendo que sentimentos desempenharam importante papel no avanço – e também no atraso – civilizatório, diversos especialistas se posicionaram a favor e contra suas ideias. Iniciou-se aí uma polêmica calorosa que segue até hoje.
Em seu livro, Damásio revela estudo inédito sobre homeostase, tendência que alguns seres vivos têm para manter o equilíbrio e a conservação de seus elementos fisiológicos e do metabolismo por meio de mecanismos de regulação. Ele argumenta que, em contrapartida às tendências históricas de estudar a razão e valorizá-la acima do afeto, os sentimentos são bem mais complexos e essenciais para a sobrevivência humana do que se imaginava.
Para Damásio, “o intelecto está ligado ao córtex cerebral, cuja estrutura é resultante de uma evolução moderna do cérebro. Já os sentimentos advêm do tronco do cerebelo, da espiral medula, dos nervos periféricos, enfim, de uma mecânica cuja origem se confunde com o princípio da evolução dos seres vivos. Essa estrutura, a história de sua formação e como ela age são aspectos muito difíceis de ser estudados”.
Damásio concedeu, em passado recente, entrevista à revista Veja falando sobre sua pesquisa, a consciência e o sentimento humano e a origem cerebral. Nas mídias da ABN, dois renomados neurocientistas, Ricardo Nitrini e Luiz Sanvito, opinam sobre as posições do colega português.
A emoção e os sentimentos
A diferenciação de Damásio alega que a emoção é um “programa de ações”, algo que se desenrola sucessivamente e que não tem relação com o que se passa na mente. O sentimento, por outro lado, é a “experiência mental que nós temos do que se passa no corpo”. Para ele, o ponto fundamental dessa comparação é separar aquilo que é mental do que é comportamental.
A tendência intelectualista do século XX, que dava mais importância à razão, levou à necessidade de suprimir as emoções, pois não valia apena manifestá-las. Segundo Damásio, a falta de estudo sobre o tema levou a “muitas mazelas que poderiam ser evitadas pelo maior controle dos sentimentos”.
Ricardo Nitrini
O coordenador dos Departamentos Científicos da Academia Brasileira de Neurologia, Ricardo Nitrini, acredita que Damásio desenvolveu ideias muito importantes sobre a neurofisiologia e fisiopatologia do comportamento humano, principalmente pelos estudos de casos, com apoio da neuro-imagem.
Segundo ele, “sentimentos podem ser compreendidos como a sensação causada por um estímulo externo ou interno ao indivíduo, enquanto as emoções englobam os sentimentos e os comportamentos desencadeados a partir deles”.
“Esses comportamentos podem ser apenas neurovegetativos, como rubor ou palidez facial, taquicardia, aumento da frequência respiratória ou comportamentos motores como agressão ou fuga, por exemplo”, complementa. “Aprendemos desde pequenos a controlar nossas emoções. Sem isso, a vida em sociedade seria impossível. Sem dúvida, é mais fácil controlar a parte motora do nosso comportamento emocional do que a neurovegetativa e os nossos sentimentos”.
Nitrini explica que as emoções fazem parte de todas as nossas decisões e que, por conta disso, é difícil dissociá-las das ações do Sistema Nervoso Central. De acordo com o especialista, há algumas regiões que estão diretamente associadas ao comportamento emocional. Sabe-se disso através de estudo realizado com mamíferos próximos ao homem – como os primatas não-humanos – e por estudos de casos de indivíduos que sofreram alterações do comportamento emocional depois de lesões de algumas estruturas.
O impacto da cultura na consciência dos seres humanos também é muito discutido por Damásio e os especialistas da área. Para Nitrini, essa questão vai mais longe ao incluir os sentidos, introduzindo sensações como visão, audição, olfato, paladar, tato, entre outros, que são fortemente modificados pela cultura a qual o indivíduo se encontra. “Pode-se imaginar, portanto, como os sentimentos também devem ser afetados, embora existam alguns, como a noção da importância da liberdade e da igualdade, que já estão bem presentes em mamíferos e macacos do novo-mundo”.
Wilson Luiz Sanvito
Há especialistas, entretanto, que possuem ideias divergentes das de Damásio e Sanvito se posiciona como um deles. Segundo o neurologista e escritor, sua teoria “reduz tudo ao biológico”, criando uma visão que simplifica a questão mente-corpo.
De acordo com Sanvito, o autor descreve muito bem a parte neurológica: “Ele diz que a consciência tem como precursor um proto-ser, que a antecede. Depois, tem uma teoria em que, nesse ser, aparece uma consciência central. Mais tarde, uma ampliada. O homo sapiens se transforma num ser autobiográfico. Eu não concordo, para mim é uma narrativa mito-poética, ou seja, muito elaborada, mas ainda é apenas narrativa”.
“Damásio explica funções do cérebro. Consciência não é só o conjunto disso, é muito mais”, revela. “Esse problema ainda é bastante polêmico e complexo e não tem nenhuma explicação, até o momento, que responda a questão: a mente e o corpo são separados ou a mesma coisa?”.
O neurologista explica que existem hoje, nessa área, neurocientistas especialistas em inteligência artificial e filósofos da mente, cada um com sua teoria. O australiano David Chalmers diz que, no assunto mente-corpo, há problemas fáceis, que são os neurológicos, e o problema difícil, que é justamente explicar a consciência.
“Chalmers faz uma experiência”, conta Sanvito. “Um zumbi ou um robô podem ter um comportamento semelhante ao do ser humano, mas ele não tem estado subjetivo de consciência, o que significa que, quando você conversa com uma máquina, ele faz coisas incríveis, mas não atribui significado àquilo que faz porque ele não tem consciência”.
Segundo Sanvito, o que Damásio faz é uma simplificação. “Ele explica os correlatos neurais. Ele não explica mente. Essa história de consciência central e ampliada tá muito mal explicada e não é aceita pela maioria dos estudiosos”, finaliza.