Um conhecido mecanismo do corpo humano serviu de base para uma descoberta importante no tratamento da esclerose múltipla. Assim: quando o corpo humano é exposto a baixas temperaturas, há uma redução natural de suas defesas. Isso acontece porque o frio faz com que o sistema imunológico direcione seus esforços para manter a temperatura corporal. Pois essa engrenagem levou pesquisadores da Universidade de Geneva, na Suíça, a uma hipótese inovadora: usar o princípio para combater doenças autoimunes. Os resultados em especial para aliviar os sintomas da esclerose múltipla foram surpreendentes.
A pesquisa acompanhou durante duas semanas camundongos infectados por encefalomielite autoimune experimental (EAE), um modelo animal da esclerose múltipla, divididos em dois grupos. O primeiro foi colocado num ambiente com temperatura de cerca de 10ºC, enquanto o segundo foi mantido em condições ambiente. Já nos primeiros dias do experimento, os cientistas observaram uma melhora significativa no quadro da doença nos indivíduos do primeiro grupo.
— Isso mostra que nas baixas temperaturas existiu uma atividade inflamatória autoimune menor que na temperatura habitual. Agora, a partir desses dados, é possível extrapolar para estudos em humanos — explica o coordenador do Centro de Esclerose Múltipla do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, e membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), Tarso Adoni.
No experimento, os sintomas ligados à locomoção diminuíram drasticamente no primeiro grupo, com casos em que o animal nem conseguia andar tendo melhorado para apenas uma ligeira paralisia na cauda. Os resultados da pesquisa foram publicados no último dia 22 na revista científica Cell Metabolism.
— Seguramente é uma fronteira que se abre para se estudar novos modelos e se desenharem novos trabalhos para reduzir a agressão da doença — acrescenta Adoni.
Temperatura e esclerose múltipla
A esclerose múltipla é uma doença autoimune caracterizada pelo ataque do próprio organismo à mielina, uma camada protetora que envolve os neurônios. Esse dano afeta o envio dos comandos do cérebro para o resto do corpo e provoca sintomas como dormência ou formigamento, dificuldade de andar e de coordenação motora e problemas de visão.
O coordenador médico do Centro de Excelência em Esclerose Múltipla do Programa Integrado de Neurologia no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, Rodrigo Thomaz, detalha relação positiva entre baixas temperaturas e esclerose múltipla.
— Só de você esfriar um pouco o corpo do paciente, com compressas de água fria, por exemplo, ele já tem um alívio dos sintomas. Entendemos que nesse caso ocorre uma melhora na transmissão dos impulsos nervosos — explica Thomaz.
Segundo o especialista, os médicos sempre observaram que o frio ajuda o paciente com a doença, enquanto o calor tende a piorar. Ele afirma, no entanto, que se acredita que esse mecanismo é ligado aos impulsos nervosos. O estudo dos pesquisadores suíços pode abrir mais uma perspectiva sobre como a temperatura interfere na doença.
— Hoje a importância é entender o seu mecanismo, saber se ela tem de fato uma interferência na produção da doença autoimune e como a gente pode usar esse conhecimento para melhorar a neuroinflamação e a qualidade de vida do paciente na prática — diz Thomaz.
Resultados do experimento
Os pesquisadores responsáveis pelo trabalho investigaram como funciona em nível celular a diminuição da atividade do sistema imunológico causada pelo frio, que consequentemente reduz o ataque à mielina.
Eles constataram que o esforço desviado para estabilizar a temperatura corporal provocou uma redução das moléculas do sangue responsáveis por defender o organismo de corpos estranhos, como vírus e bactérias, mas que, no caso de uma doença autoimune, ataca o próprio organismo.
Essa redução as tornou menos ativas e menos capazes de instruir a resposta imune das chamadas células T, que também desempenham um papel fundamental na resposta imunológica. Com isso, a atividade do sistema diminuiu como um todo, o que melhorou a neuroinflamação.
Os especialistas ressaltam, no entanto, que apesar de o enfraquecimento do sistema imunológico reduzir a resposta que ataca o organismo, ele também deixa o corpo humano mais suscetível a infecções por agentes que devem de fato ser combatidos. Além disso, embora o princípio tenha se mostrado eficaz para conter a esclerose múltipla, eles destacam que as doenças autoimunes não funcionam de uma maneira única e, por isso, não é garantido que esse método se aplicaria às demais. Mas um grande passo foi dado rumo ao desenvolvimento de novos caminhos de terapias.
Tratamento da doença
Hoje, não há uma cura para a esclerose múltipla. Por isso, o tratamento é focado nos sintomas e realizado majoritariamente com o uso de anti-inflamatórios, em especial corticoides, além de medicamentos específicos para regular ou modular o sistema imunológico.
Há ainda uma opção mais recente e que tem se mostrado promissora: o transplante de células-tronco. Foi o caso da atriz americana Selma Blair, que foi diagnosticada em 2018. Depois de um transplante, a doença entrou em remissão. No entanto, devido à complexidade e aos altos riscos do procedimento, ainda é uma opção pouco oferecida.
Hoje, cerca de 2,8 milhões de pessoas no mundo vivem com esclerose múltipla, segundo dados do Atlas da Esclerose Múltipla. De acordo com o Ministério da Saúde, a prevalência média da doença no Brasil é de 8,69 casos para cada 100 mil habitantes.
A doença afeta principalmente o sexo feminino. A proporção é de três mulheres para cada homem. Ela acomete principalmente adultos jovens, de 20 a 40 anos.
Na maioria dos casos, a doença é caracterizada pela ocorrência de surtos que melhoram espontaneamente ou após o tratamento. Com o passar do tempo, as lesões provocadas se acumulam e se tornam permanentes. Daí a importância do diagnóstico e do tratamento precoce.
Fonte – O Globo